Crónicas do autocarro#58
"No autocarro — escreveu ainda o Gonçalo M. Tavares —, lê-se o jornal para não se olhar para o lado". Nem uma coisa nem outra, ler o jornal ou olhar para o lado, me distrai, porém, das conversas dos outros utentes, sempre tão vivas e peculiares, ora sobre as carnes que se devem utilizar no churrasco, ora sobre factos mais intrigantes do correr do tempo. Esta manhã, por exemplo, vinha a falar alto uma senhora que, sempre que chega a Fevereiro, se esquece, no fim do mês, de carregar o passe, por, disse ela, não estar habituada a que os meses sejam assim curtos. Ela já tinha idade, digo eu, para se ter habituado, mas a boa da senhora ainda no ano passado acabou a "mandar vir, mas forte e feio", com um motorista, porque estava convencida de que o passe estava válido, mas, afinal, o mês já tinha acabado. Ela ficou envergonhada - não por causa do passe inválido, mas pela peixeirada que armou no autocarro. E, este ano, já tem uma mensagem no telemóvel para não se esquecer outra vez de carregar o título de transporte no dia 28, ainda que as peixeiradas, pela conversa em anexo, prometam continuar a animar as viagens no autocarro. Ou isto ou a outra senhora que suspira e fala alto ao mesmo tempo, "Ai Sãozinha, Sãozinha, estou tão mal da minha cabeça, meu deus", como se a Sãozinha ali estivesse no autocarro e não algures na outra ponta de uma chamada de telemóvel e nos servisse de alguma coisa inteirarmo-nos de que a criatura não anda boa da cabeça. Não adianta, pois, olhar para o lado, nem ler o jornal, quanto mais não seja porque parece que a vida no autocarro vicia de um modo muito insidioso e, às vezes, eu também não estou absolutamente certo de regular muito bem da minha cabeça. Talvez devesse suspirar também pela Sãozinha ou por outra santa qualquer e declarar-me inimputável para a comum circulação nos transportes públicos, mas, em vez disso, quis hoje seguir no autocarro até ao fim do percurso, até ao ponto em que a voz gravada que se ouve nos altifalantes anuncia o "fim da linha". Fui, pois, até lá, até ao fim da linha, talvez porque precisasse absolutamente de dar corpo a uma metáfora qualquer sobre a minha vida, a falta dela e a necessidade de mudar de autocarro. Ou sobre este blogue e isto de escutar as conversas alheias como qualquer coscuvilheira. Era só isto que queria dizer, portanto: fim da linha.
Por M.J.Marmelo
Crónicas do autocarro#53
Ora bolas! Uma vez que não há nada mais fácil de arruinar do que uma quimera, fui cobardemente informado de que Sonhos é, efectivamente, uma localidade de Ermesinde e, mais concretamente, da freguesia de Alfena (o horror!...). Preferia, conforme imaginarão, ter sido mantido na mais estrita ignorância, mas não posso agora fazer de conta que não estou a par da realidade. Talvez, um dia, ainda vá a Sonhos, o que, em todo o caso, é um pouco improvável, já que a minha assinatura mensal dos transportes públicos (o passe post-moderno) não permite deslocações aos subúrbios. Terei, pois, que continuar a beneficiar da quotidiana transumância dos subúrbios, exactamente como sucedeu com a mulher que, ainda ontem (terá sido ontem?), pedia explicações relativas à chamada que tinha recebido no telemóvel, cuja origem não estava identificada, mas que, pelos vistos, partira de um indivíduo que lhe devia finezas. Por várias vezes ela perguntou ao homem por que é que ele tinha ligado de um número não identificado e para quem é que ele tinha estado antes a ligar de um número não identificado. Por quem, afinal, é que ele não queria ser identificado?
(se, acaso, o leitor estiver incomodado com a repetição da palavra “identificado”, saiba que eu a escutei vezes sem conta em cerca de dez minutos, pois a mulher não dizia mais nada e insistia na pergunta, over and over and over)
Como as explicações do sujeito não a satisfaziam, a mulher, a dada altura, revelou o verdadeiro teor da sua inquietação e perguntou ao homem, com toda a frontalidade, se ele tinha estado a ligar “para a outra”. Eu não me surpreendi com o desabafo e creio que também nenhum dos outros passageiros se surpreendeu com o verdadeiro motivo do drama da chamada não identificada. Os grandes sobressaltos existenciais dos transportes públicos são, ainda, deste teor. Os desempregados viajam, regra geral, em silêncio, remoendo o medo e a angústia do dia seguinte.
Por M.J.Marmelo
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